Quem, hoje, ainda se importa com uma morte distinta? Ninguém. Mesmo os ricos que, afinal de contas, poderiam ter esse luxo, começaram a ficar preguiçosos e indiferentes. O desejo de ter uma morte distinta está se tornando cada vez mais raro. Em breve, será tão raro quanto uma vida distinta. ― Rainer Maria Rilke, The Notebooks of Malte Laurids Brigge
Friday, January 06, 2023
Sobre a arrogância e a vaidade humanas
Friday, October 07, 2022
Na Infância
Quando eu era criança, minha mente ficava confusa e dividida entre:
1) um lar em busca de reestruturação, porém influenciado por tradições cegas de uma geração inteira antes de mim;
2) profissões de fé diferentes da minha.
Eu voltava da escola muito intrigado com algo. Eu perguntava a respeito disso a minha mãe, mas ela não sabia me explicar. Eu sempre fui um dos alunos mais aplicados da turma, mas meus colegas protestantes (normalmente 3/40) tinham notas baixas, sofriam discriminação e eram excluídos, como se fossem inferiores. Ou seja, não eram seus cabelos ou roupas, mas o fato de eles se enquadrarem no grupo dos menos inteligentes da turma.
Muitos outros traços comportamentais poderiam ter sido um motivo de estarem em outra seleção, mas até isso era questionável. A verdade é que meus colegas protestantes estavam no extremo oposto ao que eu estava. Minha mãe, recém-convertida, nunca soube me explicar o motivo. Logo, eu me via assombrado com a ideia de um dia compartilhar da mesma fé que eles.
Quando penso em meus anos de escola como criança, penso em minhas professoras e no amor que elas me transmitiam. Nunca sofri qualquer tipo de desrespeito por parte de minhas professoras. Sempre as amei e elas sempre me amaram. Se eu pudesse traçar um paralelo entre o amor de minhas professoras e o amor de Deus, eu diria que minhas professoras me amavam com o amor que Deus esperava que elas fossem capazes de me amar. Então eu me lembro delas como anjos que Deus colocou em minha vida.
Naquela mesma fase, eu tive professoras de ensino religioso na Igreja Católica. Elas também me amavam com o amor que Deus havia colocado no coração delas. Eu era uma criança que estava aprendendo sobre o amor de Deus. Elas não deturparam nada do amor de Deus pelo homem. Mais tarde, já recentemente feito adulto, tive novos professores de ensino religioso, desta vez no âmbito protestante. Eles também me transmitiram o amor de Deus com seus ensinamentos e não o deturparam ou fizeram uso do nome de Deus para seus interesses próprios. Novamente, traço um paralelo entre os professores, agora protestantes, e o Amor Divino e sua longanimidade, bondade, simplicidade, humildade e paciência.
Por outro lado, voltando à infância, nem tudo na escola foi um lugar de segurança como o olhar doce, a nota 10, o sorriso e o abraço de minhas professoras amadas. Eu tive colegas de classe que me colocaram em situações de tristeza e medo. Fui julgado por meu tamanho, por minha origem social e étnica, por não me enquadrar, pelo meu jeito de ser, pelo nome de minha família, pelo bairro em que eu morava, pelas roupas que eu podia usar, pelas marcas das mochilas e dos tênis que eu calcei, pelo Jeans sem marca, pelo lanche que eu levava ou não levava, pela habilidade nos esportes (ou a falta de interesse por eles), por estar com as pessoas que não me julgavam e pelas pessoas com quem eu brincava, por participar de um evento sim e do outro não, por tudo aquilo em que eu me destacava ou por aquilo em que eu tinha dificuldade. Fui julgado até por ser o melhor aluno da sala. Fui julgado por tudo. Quem eram meus acusadores? A maioria de meus colegas, não todos. Isso doía muito.
Hoje, parte do Brasil declama 'Deus acima de tudo, Brasil acima de todos'. Já na história que narrei, eu sabia muito bem quem era Deus, tinha uma noção do tipo de país e cultura em que eu vivia, quem eu era, quem eram as pessoas que me amavam e quem eram as pessoas que me queriam mal.
O slogan acima não daria conta de minha história de infância e, sem dúvida, ele não me tranquiliza. Ele faz ainda menos sentido na voz de alguém que não acredita nisso e, pior, NÃO vive isso, ou seja, na voz de alguém que não acredita no país (cujo povo é parte essencial), não acredita nas eleições e na democracia caracterizada pela proteção dos direitos humanos e civis de seus cidadãos, caracterizando um patriotismo vazio e em favor de seus próprios interesses partidários, um slogan que comunica intenções que não correspondem com atos.
Quem poderá confirmar que o atual presidente realmente acredita em seu slogan? Talvez sim, talvez ele (ou seus assessores) tenham lançado o slogan por acreditarem nisso, ainda que cegamente. E por acreditar em seu slogan, ele até pode não ser um grande farsante! Bom, eu posso dizer que acredito em um poder cósmico e essa é minha crença pessoal. Ponto. Porém, esse cosmo foi uma experiência transformadora em mim? Afirmar que Deus está acima de todos, digo, reconhecer isso, não muda a posição em que Deus se encontra. A relevância do fato só existe quando ele passa a mudar a realidade daquele que acredita nisso e este se permite ser transformado.
É quase automático: comunique apenas o que um grupo de pessoas consegue processar e espera de você, informe que há consequências positivas para aquele grupo em decorrência de suas ações em favor do que for comunicado. Boom! Manipule seu comportamento. É exatamente isso que vejo hoje. Um comportamento completamente previsível, quando o discurso é manuseado com esse fim. Um comportamento difícil de acreditar que é possível, mas é real.
Lamentável é compreender que o estadista à frente desse slogan tem uma compreensão distorcida do Deus que ele decidiu enxertar em sua política e de Seu evangelho. Uma figura desprezível que deseja associar Deus, dono da soberania e magnitude, ao seu projetinho humano pessoal e, neste processo, arrastar tantos ao colapso.
No plano de Deus, devemos conhecê-lo e amá-lo de coração, alma, entendimento e força. Nossa própria vida depende de conhecermos a Deus e que Sua vida nos seja revelada ao conhecê-lo. Por isso, Ele esteve fisicamente com o homem; apesar de Senhor, foi servo e está com o homem a cada segundo, em espírito. Ao reconhecer, em política, que Deus está acima de tudo, a construção objetivada não passa de um signo autoritário-teocrático, um imperativo de força, uma manobra eleitoral covarde.
Quando criança, compreendi que havia amor em meus professores, na figura materna, nas figuras fraternas, na figura paterna, mesmo não sendo de sangue. Mais tarde, encontrei o amor de Deus em alguns bons líderes que tive, em amigos incondicionais, nas artes, na música, na dança, na literatura, na poesia e, sem dúvida, na natureza, especialmente com os animais. O amor de Deus me alcançou em inúmeros lugares por onde passei e, até hoje, ele me busca e me constrange. Ele me arrebata dos lugares de medo e de vergonha e me coloca em lugares de segurança e partilha com outros, mesmo que sejam completamente estranhos.
Como não tive nenhuma experiência pessoal com o atual presidente, só consigo descrevê-lo por comparação com as pessoas que eu realmente conheci. Sua personalidade vastamente publicada, suas falas, agenda pessoal e política me projetam imediatamente aos medos do passado, à ignomínia de ser alvo das acusações e reprovação, à ausência do amor de minhas professoras, de minha mãe, de minhas irmãs, meus amigos e de meus bons líderes na igreja. Ao levá-lo ao pensamento, algo que me deixa nauseado, eu não revivo as experiências únicas de pertencimento que vivi no Cristianismo, nas artes ou na natureza. Eu apenas me vejo exposto e alvo de chacota pública, pois revisito ações que não demonstraram um conhecimento ou uma relação com o Deus das Escrituras. Não vejo atos de misericórdia nem semelhança com o Deus bíblico. Vejo falta de empatia com a dor do Brasil, falta de amor e compaixão.
Não basta estar pronto para defender que Deus está acima de tudo e que o Brasil está acima de todos, esquecendo-se que o Brasil é seu povo e que, com Deus, não se brinca. A liderança genuinamente cristã que eu conheci sempre se dispôs a servir, o que é muito diferente de se sobrepor com ignorância.
Se o Brasil se rendesse à inteligência da terra, erguer-nos-íamos enraizados, como árvores. O Brasil sobreviveu um quadriênio amarrado em nós que seu povo mesmo deu. Ele lutou, solitário e confuso. Como crianças, recomeçamos, podemos cair e aprendemos pacientemente a confiar em nosso peso. Como disse Rilke, até um pássaro tem que fazer isso antes que ele possa voar (Livro de Horas: Poemas de Amor a Deus). Então, uma vez tendo tropeçado e caído, torço para que todos tenham aprendido com os laços. É hora de desatar esses nós e voar.